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Bem vindos ao blog do Frei Flávio Henrique, pmPN

Caríssimos(as),
é, sim, nosso objetivo, "provocar" a reflexão para poder confrontar o modelo mental instalado e o paradigma de conhecimento que se arrasta há mais de cinco séculos, na esteira do renascentismo, do humanismo, da reforma protestante, do iluminismo e de todo processo de construção do conhecimento que atenta contra a Razão sadia - que inexiste sem o discurso metafísico - e contra a Verdadeira Fé, distorcida pelos pressupostos equivocados das chamadas nova exegese e nova teologia. (Ler toda introdução...)


* "PROVOCAÇÕES" MAIS ACESSADAS (clique no título):

*1º Lugar: Arquidiocese de Juiz de Fora reconhece avanço da Obra do Pater Noster...

*2º Lugar: Lealdade, caráter e honestidade... no fosso de uma piada!

*3º Lugar: Fariseu ou publicano, quem sou?

*4º Lugar: Retrospectivas e balanços de fim de ano...

*5º Lugar: “A sociedade em que vivemos”: um big brother da realidade...

* "PROVOCAÇÕES" SUGERIDAS:

*Em queda livre na escuridão...

*Somos todos hipócritas... em níveis diferentes, mas, hipócritas!

*Vocação, resposta, seguimento...

*O lugar da auto piedade...

*A natureza íntima da corrupção...

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Salva-me de mim mesmo!

“Seguindo os Menas gregos, santa Caritina, escrava de um senhor chamado Cláudio, vivia sob o imperador Diocleciano e o conde Domécio.
Tendo ouvido falar dela, o conde escreveu ao seu senhor pedindo-lhe que a enviasse para verificar se ela era cristã. Seu senhor ficou aflito e chorava vestido com um saco. Mas santa Caritina o consolava dizendo: "Meu senhor, alegra-te em vez de te afligir; eu vou ser um sacrifício agradável a Deus pelos meus pecados e pelos teus". Ele respondeu-lhe: "Lembra-te de mim no reino celeste" e, depois, enviou-a ao Conde.
Conduzida diante do Conde, ela confessou, corajosamente, sua fé. Arrancaram-lhe a pele da cabeça e aplicaram-lhe, no lugar, carvões ardentes! Depois, amarraram-lhe uma pedra pesada e precipitaram-na no mar. Mas, saindo de lá, santa Caritina compareceu de novo diante do Conde. Depois de várias torturas, arrancaram-lhe as unhas das mãos e dos pés; foi quando ela entregou, por fim, a alma a Deus.”
O que se passa no pensamento de uma pessoa como a escrava Caritina? Quais motivações e/ou desmotivações moviam seu espírito? Como pode o psicologismo moderno – com arrogante estupidez - generalizar como patologia tão viva entrega à morte involuntária? Há muitas questões severas que podem ser extraídas deste evento, ocorrido no tempo do grande imperador romano Diocleciano, um dos mais cruéis perseguidores de cristãos no início da Igreja...
Gostaria de penetrar, o quanto possível, a partir deste breve e contundente testemunho de martírio, na realidade desta mulher para tentar compreender quais razões racionais poderiam eventualmente ter-lhe forjado um espírito tão nobre e sóbrio, diante da arrogância, truculência, covardia e crueldade dos homens.
Em primeiro lugar estamos diante de uma escrava. Consideremos a angústia que seria natural a uma pessoa nessas circunstâncias.
Como escrava, não tinha o “poder” de “subjugar” o mando de seu “empregador”, obrigando-o por força de uma lei trabalhista a dobrar sua autoridade para que pedisse a ela gentilmente o favor de prestar-lhe algum serviço após certa carga horária permitida de trabalho, fazendo-o, assim, curvar o seu “poder” de “dominação”.
Como escrava, ignorava o que era ter fins-de-semana em seu canto próprio, com afazeres independentes, autônomos e completamente alheios à vontade ou conhecimento de seu amo. Jamais poderia tirar férias, programando um mês de atividades livres de compromisso ou ócio ilimitado.
Como escrava, não tinha o direito de ir e vir sem humilhar-se, submetendo cada refreado ímpeto de vontade ao dono de suas escolhas, agradecendo sempre com um sorriso necessário – e pró defesa de repreensões e punições – a constância das negativas pro formes da parte de seu mandante.
Como escrava não podia possuir vida própria. Não podia sequer alimentar desejos e sonhos.
Como desejar um passeio na praça no domingo à tarde ou um vestido ou um novo trabalho ou uma determinada refeição de seu gosto ou o que quer que seja?
Como sonhar, por exemplo, em viajar um dia para os Pirineus ou para ilhas gregas?
Não. Como escrava, sequer o direito de sonhar existia. Como escrava não possuía nem direitos civis, nem trabalhistas, nem humanos, nada. O desejo e a vontade do(a) escravo(a) são, de per si, todos estéreis. E isto é um fato.
O desejo, a vontade e o sonho na vida de uma escrava corresponde a uma mulher sem útero, que se ilude com uma futura gravidez, que jamais irá acontecer.
Ter sonhos e vontades baseados no princípio da liberdade de escolha não faz parte da possibilidade da vida estéril de uma escrava.
Agora, imaginemo-nos numa vida assim, sem passado escolhido, sem presente consentido e sem futuro querido. Imaginemo-nos vivendo uma vida de cobranças contínuas sem o direito sequer de esperar aquele fim de tarde pós jornada de labuta diária ou do merecido descanso semanal ou, ainda, aquele mês anual no qual podemos romper, por um curto período que seja, com a dura rotina.
Viver dia após dia, sem a perspectiva da realização das vontades e desejos, certos de que nem adianta planejar qualquer folga das obrigações estressantes, pois, de nada vale programar o que não tem possibilidade de ser realizado, é, talvez, a maior violência que se pode cometer contra um ser pensante, feito livre para, a partir do pensamento, escolher, decidir e realizar suas escolhas e decisões.
Como imaginar que uma pessoa nestas condições não sentiria profunda revolta contra tudo e contra todos, enfim, contra si mesma e contra a própria miserável vida de total impossibilidade? E, por fim, como não sentir revolta especialmente contra o seu semelhante que a domina a preço de moedas no mercado da escravidão do senso comum?
Como uma pessoa nestas condições é capaz de sair de si, das suas pavorosas frustrações, do seu gueto existencial, do seu inferno dantesco, para consolar o seu principal opressor, aquele que a mantém refém de seu egoísmo e impedida de sequer ter vontade própria?
Que tipo de altruísmo é este que desejando redimir - com a própria morte! - as culpas de seu principal opressor, é capaz, ainda, de acusar-se francamente, esperando redenção para o pecado de ter vivido sem realizar sonhos e vontades?
Como aceitar com tanta generosidade a morte sem pensar egoistamente, neste caso, no duplo benefício imanente: ficar livre definitivamente daquela vida de cão e punir o dominador com a única forma de não mais obedecê-lo contra a vontade, ou seja, morrendo?
Nada disso pensou a escrava Caritina. Pensou, ao contrário, numa saída serviçal transcendente: "Meu senhor, alegra-te em vez de te afligir; eu vou ser um sacrifício agradável a Deus pelos meus pecados e pelos teus"
O amo, à moda penitencial judaica, vestiu saco e cobriu-se de cinzas. Para quê? Por receio de perder os préstimos solícitos da boa escrava? Por temer não recuperar as moedas que lhe custara aquela infeliz? Por medo de ser julgado e condenado como protetor de cristãos, os quais deviam ser entregues ao império para execução?
Todas estas razões, profundamente egoístas, podem ter passado pela cabeça daquele senhor...
Até a sua mínima nobreza traz um traço egoísta: "Lembra-te de mim no reino celeste", suplica aquele que parecia dono de si, entretanto, escravo da liberdade que pertencia à escrava sujeitada a ele.
Esta é a diferença profunda entre um mártir e um terrorista: o mártir morre para salvar aquele que o destrói; o terrorista mata aquele que o destrói, para tentar salvar sua consciência indômita, cujo único amor capaz de realizar é o culto idolátrico de si mesma.
O que faz uma escrava, como Caritina, depois de suportar amistosamente a austeridade da renuncia de si, no abnegado serviço sem reconhecimentos ou compensações, imolar-se no suplício pavoroso das brasas que queimavam os miolos em carne viva sem deixar esmorecer a consciência de liberdade, para sustentar uma escolha inalienável: a de oferecer-se como oblação ao Criador que permitiu que ela, depois de viver como animal mandado, morresse como um monstro odiável?
O que faz uma pessoa, como a escrava Caritina, além de tudo, colocar os seus pecados na frente dos pecados do algoz de sua liberdade, mostrando-se pronta para acusar primeiramente suas próprias falhas e tardia para julgar a falha alheia?
O que faz uma pessoa nestas condições, depois de ter a cabeça escaupelada e jogada para morrer afogada, conseguindo escapar, apresentar-se novamente diante do carrasco para completar o sufrágio, como se a primeira parte do suplício tivesse sido por conta de suas falhas e a segunda para aplacar a pena transcendental contra seu amo e seu algoz?
Uma alma doente de si mesma, desejaria que tamanho horror se tornasse causa de culpa ainda maior para os semelhantes que agem como carrascos seguros de seu senso de justiça e da “perenidade” de seu poder temporal.
Invés, uma alma curada de si mesma, como a de Caritina, entendeu penosamente que tamanho horror é digno de piedade e ardeu de sentimentos de redenção para seus estultos opressores.
O que dizer depois de tão vigoroso exemplo, vivo na Igreja - depois morto pelas garras do século - há quase dois milênios?
Resta, ao menos a mim, reconhecer-me indigno de participar de tão nobre comunhão humana e suplicar entre lágrimas de vergonha, ladeando o Cláudio dono da escrava Caritina: ”Lembra-te de mim no reino celeste"...
Lembra-te, antes, de curar-me da doença de mim mesmo, para que eu não me revolte contra as injustiças dos meus semelhantes e para que eu não me aquiete com as minhas próprias injustiças.
Lembra-te de mim, gloriosa Caritina, cujo senso de humanidade denuncia o quão deplorável é a arrogância dos que idealizam a salvação dos homens a partir da truculência de seus próprios atos em nome de Deus, do povo e, hoje, do chamado estado democrático, o qual - também da linha do equador para baixo - agrega Dioclecianos, Domécios e Cláudios, com sangue vermelho na vontade, amor revolucionário no âmago do coração belicoso e ideais de um império pró-povo meu, ó meu povo, afinal, para eles, tudo é deles... são senhores de si mesmos e do povo que “protegem”...
Salva-me de mim mesmo, fazendo-me escravo dócil, sobrevivente a esse estado coletivo de sandices.
Salva-me de mim mesmo... Salva-me de mim mesmo!
Pe. Frei Flávio Henrique, pmPN

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